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Atribui-se a Pedro Malan a frase célebre: “No Brasil, até o passado é incerto”. Mas há também certezas, quando se trata de governos. As más ideias do passado sempre voltam a nos assombrar. E o pior, nestes dias, é que nem podemos criticá-las. Logo surge alguém (de ambos os polos) dizendo que é detalhe, que a hora é binária, do bem contra o mal, e de que tudo o mais se verá depois.

Pensei nisso, e no “museu de grandes novidades” de Cazuza, quando li que o governo autorizou o uso de até 50% dos depósitos do FGTS dos trabalhadores brasileiros para a compra de ações da Eletrobrás, no processo de privatização. Do total, será deduzido o que já tiver sido usado para comprar ações da Petrobras e da Vale, no passado.

O FGTS foi criado em substituição ao regime de estabilidade no emprego, que era adquirida após dez anos trabalhando para o mesmo patrão. O modelo anterior não funcionava, porque as pessoas eram demitidas quando aquele prazo estava chegando – e mesmo antes, depois que os juízes começaram a antecipar a estabilidade.

A lógica do FGTS é a de uma poupança forçada, formada através de contribuições do empregador correspondentes a 8% do salário bruto, que pode ser usada pelo trabalhador quando for dispensado ou ficar impossibilitado de trabalhar. A ideia é boa, mas já nasceu torta e foi sendo piorada ao longo do tempo.

Os recursos do FGTS rendem a variação da Taxa Referencial (TR) – calculada e divulgada pelo Banco Central do Brasil – acrescida de uma taxa de juros fixa de 3% ao ano. Essa combinação leva, historicamente, a rentabilidades muito inferiores àquelas obtidas em aplicações em títulos e fundos de renda fixa de mercado.

A suposta justificativa para essa distorção seria a destinação social dos recursos do FGTS, que são utilizados para a concessão de créditos, muitas vezes subsidiados, dirigidos à construção e à aquisição de imóveis no sistema financeiro da habitação e a obras de infraestrutura e saneamento básico.

Acontece que a diferença é gritante. O IPCA, principal índice de inflação do país, variou 301,8% entre janeiro de 2000 e abril de 2022, quase nove vezes mais que a variação da TR no mesmo período (35%). Já o acúmulo dos juros de 3% ao ano sobre os depósitos do FGTS somou menos de 191% naquele período, contra uma remuneração mais de quatro vezes superior do CDI – que superou em 850% o IPCA naquele intervalo.

Nesse cenário, todo trabalhador brasileiro minimamente instruído sabe que praticamente qualquer investimento a que pudesse destinar seus depósitos de FGTS teria um desempenho melhor do que TR mais 3% ao ano. E, por isso, não hesitará em aceitar a oferta caso o governo lhe dê uma alternativa – como fez em 2000 e 2002, respectivamente com as ações de Petrobras e Vale, e fará agora com as da Eletrobrás.

De fato, segundo dados levantados pelo Valor Data e publicados pelo Valor em 19 de maio de 2022, as ações da Petrobras valorizam 1.236,2% de 18 de agosto de 2000 a maio de 2022, enquanto o FGTS rendeu 152,7% no período. Já Vale subiu 3.426,4% de março de 2002 a maio de 2022, contra 133,4% do FGTS.

O FGTS é uma poupança para ser usada em um momento de dificuldade – normalmente a perda do emprego. Ações são mais voláteis que aplicações em títulos públicos, por exemplo. A depender de sua situação patrimonial, seria natural que um empregado preferisse uma aplicação mais conservadora dos recursos do FGTS – e ainda assim muito mais rentável do que a imposta pelas regras vigentes.

Essa alternativa, entretanto, de decidir a melhor forma de investir seu próprio dinheiro, está sendo mais uma vez negada ao trabalhador brasileiro. Seus recursos sequestrados só poderão ser usados para ajudar o governo a vender uma estatal – e mesmo assim por meio de fundos de investimento, que cobrarão taxa de administração, reduzindo a rentabilidade.

Até as ações da Eletrobras, a mais recente alforria ao dinheiro dos trabalhadores foi concedida em 2016, com o direito ao uso de até 10% dos depósitos como garantia de empréstimos consignados. Naquela época (em 29 de fevereiro de 2016) lamentei, em artigo no Valor, que, ao “invés de receber a poupança quando dela mais precisa, restará ao trabalhador o consolo de um televisor e de uma geladeira novos”.

Pouco depois, o Conselho Curador do FGTS, como se estivesse protegendo os trabalhadores, limitou os juros daqueles empréstimos a 3,5% ao mês, enquanto os juros creditados sobre os depósitos do FGTS são de 3% ao ano. Confirmou-se, de papel passado, o que era óbvio: a dívida crescerá muitas vezes mais rápido do que a garantia e, a depender da proporção, pode ser capaz de consumi-la toda.

“Como passam os anos! Ultimamente têm passado muitos anos”. Era dezembro de 1945 e Rubem Braga, a pretexto de narrar uma pelada na praia, reclamava da velhice, em uma de suas mais famosas crônicas (A companhia dos amigos). Tinha pouco mais de trinta anos, mas já se alcunhava o “velho Braga”.

Eu preferiria pensar como Arnaldo Antunes: “Não quero morrer pois quero ver como será que deve ser envelhecer”. Mas é difícil vencer a rabugice e a desesperança, e já não se sentir velho, diante da repetição dos mesmos erros por aqueles que comandam o país. Afinal, pregar sempre contra as mesmas decisões, governo após governo, é sinal de uma de duas coisas: ou você está sempre errado ou de nada adianta estar certo.

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Marcelo Trindade — Foto: Arte sobre foto Divulgação

Marcelo Trindade — Foto: Arte sobre foto Divulgação

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